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domingo, 5 de maio de 2013

A Lenda da Barca

João era um funcionário recente naquela renomada companhia. Como tal, seus colegas costumavam lhe informar dos prós e contras de trabalhar ali. Entre os prós, a participação nos lucros da empresa e a máquina de fazer café, capuccino e leite com chocolate, de uso gratuito. Entre os contras, a Lenda da Barca.

Em seu primeiro ano, uma imensa alegria em trabalhar naquela empresa tomava conta do João. Mas sempre alguém vinha assombrá-lo, dizendo:

- A barca chegará em fevereiro...

João ficava matutando se aquilo era mesmo verdade. Não conseguia acreditar que, em uma empresa como aquela, a barca passaria todos os meses de fevereiro levando embora uma quantidade razoável de funcionários, metaforicamente falando. Seria somente uma brincadeira de muito mau gosto por parte dos seus colegas? Por via das dúvidas, ele procurava sempre trabalhar firme para não fazer parte da tripulação.

Quando, finalmente, o amaldiçoado mês de fevereiro chegou, a tensão passou a tomar conta das feições dos funcionários. E, em um dia aleatório, na parte da tarde, ela, a temida e pavorosa barca, ancorou de surpresa. A barca era capitaneada por uma generalista e uma estagiária de RH, além do gerente da área onde ela ancorasse. As funções desses 3 integrantes eram:
  • Estagiária: buscar, um por um, para uma conversa em particular com a generalista e o gerente, os desventurados funcionários que fariam parte da tripulação. Além da barca, essa estagiária também costumava ser a encarregada de buscar os funcionários que seriam embarcados a varejo, ao longo do ano. Assim sendo, toda vez que ela entrava em alguma área para tratar de qualquer assunto, os funcionários já a encaravam com olhos de horror. Isso fez com que ela ganhasse o simpático apelido de Morte, aquela da foice. Duvido que, na história corporativa, algum outro estagiário tenha sido tão temido quanto aquela moça.
  • Generalista: era quem dava a notícia triste a cada desventurado e explicava os porquês.
  • Gerente: não falava nada. Somente dava respostas evasivas, caso o desventurado perguntasse algo. Ficava o tempo todo olhando para o desventurado com aquela cara de quem ficou muito abalado com a perda. E, ao final da conversa, dava aquele abraço mui sincero de despedida.
João viu a Lenda da Barca se tornar realidade e levar embora cerca de vinte desventurados tripulantes naquele ano. Aliás, nem quis ver muito. Com medo de se tornar mais um tripulante, ficou ali, escondidinho, sentado em sua cadeira, trabalhando mais e mais, enquanto o mundo caía à sua volta. A comoção tomava conta do ambiente, com muita choradeira na despedida dos desventurados e comentários emocionados do tipo:

- Como podem ter feito uma coisa dessas com a Marineide? Ela já tinha quinze anos de casa! Era um patrimônio da empresa!

Ou:

- E o Calazans, hein? A mulher dele está grávida! Que crueldade!

Ou então:

- Nessas horas fico me perguntando se vale a pena todo o nosso esforço. Para acabar assim...

João safou-se desta e de todas as outras barcas subsequentes que presenciou enquanto trabalhava naquela renomada empresa. E todo ano foi a mesma história: fevereiro, barca, choradeira, despedida, murmúrios e críticas à empresa e à gestão. É claro que os murmúrios e críticas ocorriam longe dos ouvidos do gerente, pois embora houvesse o sincero clima de consternação, o sentimento geral era de:

Abreu morreu.
Antes ele do que eu.

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