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domingo, 7 de abril de 2013

Aromas da Vida Corporativa

Tempos difíceis. Pressões de todos os lados. Falhas que se repetiam. E, no meio do tiro cruzado, Almeida, gerente da área financeira de uma grande companhia. Balanços que não batiam. Absenteísmo frequente de alguns funcionários. Alta rotatividade de pessoas e, como não podia deixar de ser, funcionários repetindo, a boca miúda, aquelas eternas verdades corporativas:  "Tá vendo? O Ezequiel saiu da empresa e levou consigo todo o conhecimento que tinha do negócio! A empresa prepara os funcionários não para ela, mas para o mercado! Sem um plano de carreira decente e crescimento, as pessoas saem mesmo!" O momento não estava nem um pouco favorável para o Almeida.

Sua caixa de e-mails estava lotada de mensagens que não conseguia responder, porque ele precisaria de pelo menos trinta horas por dia para resolver o que tinha que resolver. E quase cem por cento das mensagens que recebia chegavam com o ícone ameaçador de carta pegando fogo. Está certo que muita gente sem noção costuma usar esse ícone para enviar mensagens do tipo: "Oi! Vamos almoçar hoje no Delírio Equatorial?" Mas, no cenário que o Almeida enfrentava, e-mails pegando fogo eram a visão do inferno.

Ele sentia vontade de ligar para a área de informática e perguntar: "Edmílson, tem como vocês apagarem todo o histórico, inclusive os backups, de todas as mensagens que estão marcadas como não lidas da minha caixa de entrada?" Só que esta pergunta somente ocorria em seus sonhos conturbados, nas duas únicas horas da noite em que conseguia vencer a insônia e adormecer. Nestes sonhos desesperados do Almeida, o papel do Edmílson era quase equivalente àquela mulher amada por tantos anos e que, finalmente, está no altar prestes a dizer "sim". O problema é que o Almeida acordava sempre um segundo antes do "sim" do Edmílson.

Por seus catorze anos de experiência em gestão, Almeida sabia que a corda estava roendo para o seu lado. Todos os dias, logo que chegava ao trabalho com olheiras típicas de gladiadores do UFC após a luta que perderam por nocaute técnico, aparecia alguém esbaforido informando quinze notícias alarmantes em uma cajadada só. E não dava nem tempo de agir, pois, logo depois, Herbert (diretor financeiro) e os gestores de outras áreas afetadas pelos problemas causados pela sua área o convidavam para uma torturante reunião emergencial.

Cada corpo humano possui uma reação diferente aos estresses. Com o Almeida não era diferente. Sempre que ocorriam reuniões difíceis, ele ficava um tanto indisposto e, usando um termo bem popular, precisava dar uma barrigada. Logo que acabava a reunião, disfarçava em sua sala para manter a compostura e ninguém perceber e... zapt! Caminhava a passos firmes, dando bom dia com um sorriso sofrido e amarelo - do tipo que chega dar cãibra no maxilar - a todos os que cruzavam com ele nos corredores e desaparecia no horizonte do toalete, como se fosse o pote de ouro no final do arco-íris.

Ele era orgulhosamente ateu. Afinal, seguindo os modismos contemporâneos, ser ateu é sinônimo de alguém que já "engoliu" muitos livros, possui "ene" diplomas e, com isso, possui inteligência suficiente para afirmar que Deus não existe e que Jesus era só um maluco, que talvez nem tenha existido, porque não há as suas cinzas para comprovar. O Almeida adorava acompanhar os modismos, ainda que de forma inconsciente. Mas quando estava lá, em um dos poucos momentos que se sentia seguro, sentado na privada, parecia até que estava em um confessionário, repetindo exaustivamente: "Meu Deus, meu Deus, meu Deus, o que eu faço???" Além de muito espiritual, este momento era algo, ao mesmo tempo, filosófico e reflexivo: "Será que não é melhor eu chutar o balde? Vou cair fora dessa merda."

Ao fim de uma dessas experiências de quase transe do Almeida, ele seguiu o ritual de sempre:
  1. Respirou fundo;
  2. Pegou o papel higiênico;
  3. Limpou-se com a mão direita;
  4. Levantou-se;
  5. Ajeitou sua camisa como se a estivesse passando com a mão esquerda;
  6. Abaixou-se;
  7. Ergueu a cueca com a mão esquerda e o polegar da mão direita;
  8. Transpôs a cueca sobre a camisa. Nessa hora, sempre se lembrava, com uma dose de emoção, de sua doce e falecida mãe lhe ensinando a se vestir socialmente, na época em que era estagiário: "Filho, coloca a cueca em cima da camisa, porque, quando você sentar, a camisa não pula para fora da calça";
  9. Abaixou-se novamente;
  10. Ergueu a calça, que raspou suavemente na louça externa da privada, com a mão esquerda e o polegar da mão direita;
  11. Abotoou a calça. Sempre, nesse momento, toda a sua técnica de usar somente a mão esquerda e o polegar da mão direita para não sujar a roupa com essência de merda ia por água abaixo;
  12. Abotoou o cinto, já resignado por parte do seu processo de uso das mãos ser falho;
  13. Abriu a porta do cubículo;
  14. Caminhou para a pia;
  15. Lavou as mãos;
  16. Olhou-se no espelho e;
  17. Ajeitou os cabelos.
Ele sempre aproveitava suas mãos úmidas para ajeitar os cabelos, não precisando assim utilizar o papel toalha para enxugá-las. Olhava para o papel toalha, depois olhava para suas mãos secas e dizia a si mesmo: "Uma árvore a menos será derrubada..." E, segundos antes de sair do banheiro e voltar à dura realidade, já com a mão na maçaneta, concluía mentalmente, com um sorriso maroto de canto de boca: "Esses processos do banheiro, o PMBOK não ensina..."

Almeida abriu a porta do banheiro, endireitou sua postura e seguiu a passos firmes em direção à sua sala. Todo aquele protocolo de se forçar a cumprimentar as pessoas que cruzavam com ele nos corredores foi repetido, mas desta vez havia algo estranho no ar. As pessoas olhavam para ele com estranheza. Uns franziam a testa, outros riam com os olhos, outros sorriam maliciosamente... Ele começou a temer pelo pior e novamente teve um quase transe espiritual-filosófico-reflexivo: "Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Será que vou ser demitido??? Olha a cara do Alfredo! Do César! Do Aguiar! Ai, caralho... Eles são meus inimigos políticos! Estou fodido, fudeu, fudeu, fudeu..."

Ele e os outros funcionários da empresa que ocupavam cargos que envolvessem gestão de pessoas - supervisores, coordenadores, gerentes, diretores e presidente - haviam feito aqueles cursos que ensinam a não mudar a expressão facial em momentos de estresse, raiva ou de outras emoções que precisem ser controladas. Porém, o Almeida não estava conseguindo controlá-las perfeitamente. O Alfredo, o César e o Aguiar, também não. A diferença é que, enquanto a expressão nos olhos do Almeida era de terror, a expressão nos olhos dos outros três era de riso convulsivo prestes a irromper.

Quando chegou à sua sala, que era ampla e contava com uma equipe de vinte funcionários, estavam também presentes o Herbert (diretor financeiro) e mais três gestores de outras áreas da empresa, além da faxineira pertencente a uma empresa terceirizada, que estava esvaziando as lixeiras dos funcionários em um grande saco preto. Quando chegou ao centro da sala, olhou em volta e todos o estavam novamente observando com estranheza. A mesma história: uns franziam a testa, outros riam com os olhos, outros sorriam maliciosamente... Desta vez, não tinha jeito. O Almeida já estava resignado. O pior ia mesmo acontecer. Como estava no centro da sala e todos os outros estavam ao seu redor, sentiu-se como se fosse um Robespierre da vida prestes a ser guilhotinado em praça pública.

Ficou ali, paralisado. Escutou, vagarosamente, os passos de Herbert se aproximando. Sentiu a mão de Herbert encostar em seu ombro, fechou os olhos em uma fração de segundo e pensou: "Pronto, a agonia acaba agora. Ele vai me chamar para uma reunião e me demitir." Herbert observou mais um pouco e... mais um pouco e... mais um pouco. Almeida, incomodado, pensou: "Porra!!! Por que esse viado está olhando tanto para a minha bunda???" Herbert então ficou frente a frente com o Almeida e disse:

- Caro Almeida, não sei nem como lhe dar essa notícia.

A apreensão do Almeida aumentou mais ainda. Herbert continuou:

- É que, observando os seus trajes, notei a presença de um item a mais.
- Co-como assim, um item a mais?
- É! Nas suas costas, acima dos seus glúteos, enganchado nas suas calças. Parece-me ser um daqueles sachês de vaso sanitário... aroma de eucalipto... Está lançando moda, Almeida???

Após essa pergunta um tanto capciosa de seu superior, todas as pessoas ao redor irromperam em gargalhadas descomunais. Pessoas de outras salas se aproximaram para ver o que estava ocorrendo, aumentando ainda mais o coro. Parte teve a "sorte" de ainda ver o sachê de privada enganchado nas calças de um atônito Almeida. Outra parte viu o Almeida já com o sachê na mão, expressão de sorriso no rosto e olhos de tristeza. Aquela sensação de ser guilhotinado, que muitas vezes na história do mundo coube a heróis, foi trocada por outra sensação. Sabe aquele pesadelo que muitas pessoas têm na infância, de que estão no meio do pátio da escola, de camiseta e com todo o resto do corpo nu? E com todas as outras crianças do colégio em volta, rindo? Pois foi assim que o Almeida se sentiu, acordado, naquele momento, na idade adulta.

Um par de meses após essa trágica experiência, o Almeida saiu da empresa. Não sei dizer se ele foi demitido, ou se teve a sorte de conseguir uma oportunidade em outra empresa e fugir do inferno astral pelo qual estava passando, ou se, simplesmente, pediu para sair e repensar a vida. Assim como não consigo explicar como ele, ao se levantar da privada naquele momento decisivamente infeliz, conseguiu ficar com o sachê de privada enganchado em sua calça, bem acima do traseiro. Como dizem os antigos, "são mistérios que conheceremos somente após a nossa morte." Aliás, Almeida, caso queira explicar como isso aconteceu, sinta-se à vontade para postar aqui seu comentário, ok?

Desejo muita sorte a você, Almeida, em seus novos desafios. E acho também que você devia seguir a ideia que, sem querer, seu ex-chefe, o aclamado diretor financeiro Herbert, lhe deu. Lance mesmo essa moda! Nas próximas empresas em que você for trabalhar, já chegue com o sachê de privada, aroma eucalipto, enganchado nos fundilhos logo no primeiro dia de trabalho. Podem achar esquisito no começo, mas você pode adotar um discurso, com a sua equipe, de que este sachê é algo simbólico em sua gestão. Um símbolo de higiene ética, moral, de processos e de trabalho limpo e produtivo. Seus funcionários, que o terão como espelho, começarão também a adotar o uso do sachê. Os bajuladores, então, nem se fale: irão enganchar sachês pela cintura inteira, no bolso da camisa, nos bolsos da calça e no crachá. E, enfim, o melhor de tudo: com um bumbum tão límpido e aromatizado assim... os seus superiores irão pensar um milhão de vezes antes de sujá-lo com uma cravada.

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